domingo, 22 de agosto de 2010

História, Cultura e Texto

RESUMO

HISTÓRIA DA CULTURA


HISTÓRIA, CULTURA E TEXTO.
Lynn Hunt

A sociologia histórica tornou-se um dos mais importantes subcampos da sociologia, e talvez tenha sido o que mais rapidamente se desenvolveu; enquanto isso, a história social superou a história política como área mais importante de pesquisa histórica.
Na história, o avanço para o social foi estimulado pela influência de dois paradigmas de explicação dominantes: o marxismo e a escola dos Annales.
No final da década de 1950 e nos primeiros anos da de 1960, um grupo de jovens historiadores marxistas começou a publicar livros e artigos sobre a “história vinda de baixo”. Com essa inspiração, os historiadores da década de 1960 e 1970 abandonaram os mais tradicionais relatos históricos e instituições políticas e direcionaram seus interesses para as investigações da composição social e da vida cotidiana de operários, criados, mulheres, grupos étnicos e congêneres.
Mas existiu mesmo um paradigma dos Annales? Para Traian Stoinovich a escola dos Annales enfatiza as abordagens seriais, funcionais e estruturais do entendimento da sociedade como um organismo total e integrado. O paradigma da Annales constitui uma indagação sobre como funciona um dos sistemas de uma sociedade, ou sobre como funciona toda uma coletividade em termos de suas múltiplas dimensões temporais, espaciais, humanas, sociais, econômicas, culturais e circunstanciais. É uma definição que deixa muito pouca coisa de fora; conseqüentemente, em seu suposto avanço rumo à história total, perde toda especificidade.
Fernand Braudel postulou três níveis de análise que correspondiam a três diferentes unidades de tempo: a longa duração, dominada pelo meio geográfico; a média duração, voltada para a vida social, e o evento efêmero, que incluía a política e tudo o que dizia respeito ao individuo.
A ênfase da escola dos Annales à história econômica e social logo se difundiu, chegando mesmo às mais tradicionais revistas históricas. Uma vez que a preocupação com os fins econômicos e sociais representa, em termos do desenvolvimento humano, um estágio mais amplo e mais avançado do que a preocupação com os fins políticos e constitucionais, podemos então dizer que a interpretação econômica e social da história representa, em termos da história, um estágio mais avançado do que a interpretação exclusivamente política.
Nos últimos anos, os próprios modelos de explicação que contribuíram de forma mais significativa para a ascensão da história social passaram por uma importante mudança de ênfase, a partir do interesse cada vez maior, tanto dos marxistas quanto dos adeptos dos Annales, pela história da cultura.
O que mais surpreendente exemplo do desvio dos historiadores marxistas para a cultura é o seu interesse pela linguagem.
O desafio aos velhos modelos foi especialmente rigoroso na escola dos Annales. Embora a história econômica, social e demográfica tenha permanecido dominante na própria Annales, a história intelectual e cultural passou a ocupar um sólido segundo lugar à medida que a quarta geração dos Annales passou a preocupar-se cada vez mais com aquilo que, muito enigmaticamente, os franceses chamavam mentalités, a história econômica e social sofreu um recuo em termos de sua importância. Esse interesse aprofundado pelas mentalités levou também a novos desafios ao paradigma dos Annales.
Para Chartier a relação assim estabelecida não é de dependência das estruturas mentais quanto as suas determinações materiais. As próprias representações do mundo social são os componentes da realidade social. As relações econômicas e sociais não são anteriores às culturais, nem as determinam; elas próprias são campos de prática cultural e produção cultural.
Ao se voltarem para a investigação das práticas culturais, os historiadores dos Annales, como Chartier e Revel, foram influenciados pela crítica de Foucalt acerca dos pressupostos fundamentais da história social. Foucault demonstrou a inexistência de quaisquer objetos intelectuais “naturais”. Como explicou Chartier, “a loucura, a medicina e o Estado não são categorias que possam ser conceituadas em termos de universais cujos conteúdos são particularizados por cada época”, são historicamente dados como “objetos discursivos”, e uma vez sendo historicamente fundamentados, e, por implicação, sempre sujeitos a mudanças, não podem oferecer uma base transcendental ou universal para o método histórico. Foucalt não acreditava que as ciências sociais pudessem unir-se na investigação da natureza do homem, exatamente porque repudiava o próprio conceito de “homem” e a própria possibilidade de método nas ciências sociais.
Embora os historiadores tenham se interessado muito pelas criticas de Foucalt, não adotaram seu método – ou antimétodo – como modelo de prática.
Mesmo que Foucalt não tenha sido inteiramente bem sucedido na abertura de um terceiro caminho através dos domínios da história cultural, ao lado do marxismo e da escola dos Annales, não se pode negar sua enorme influência sobre a conceituação do campo.
Qual é, então, o programa da “nova história cultural?” Como a obra de Foucalt, a história mais ampla das mentalités foi criticada pela ausência de um enfoque claro. Furet denunciou que essa falta de definição estimulava uma “busca infinita de novos temas”, cuja escolha era regida apenas pelos modismos do momento.
As criticas de Furet e e Darnton nos advertem vigorosamente contra o desenvolvimento de uma história cultural definida apenas em termos de temas para pesquisa. Assim como, às vezes, a história social passou de um para outro grupo (trabalhadores, mulheres, crianças, grupos étnicos, velhos e jovens) sem desenvolver um senso suficiente de coesão ou interação entre os temas, do mesmo modo uma história cultural definida topicamente poderia degenerar numa busca interminável de novas práticas culturais.
Mas Furet e Darnton são, em alguns aspectos, injustos em suas críticas, sobretudo pelo fato de eles próprios trabalharem com o gênero que atacam. Os historiadores como Chartier e Revel não propuseram simplesmente um novo conjunto de temas para investigação; foram além das mentalités, com o objetivo de questionar os métodos e objetivos da história em geral.
Em lugar da sociologia, as disciplinas influentes hoje em dia são a antropologia e a teoria da literatura, campos nas quais a explicação social não é tratada como ponto pacífico; não obstante a história cultural deve defrontar-se com novas tensões não só dentro dos modelos que oferece, mas também entre eles.
Nos últimos anos, o mais notável antropólogo a trabalhar com a história cultural é Clifford Geertz. A decifração do significado, então, mais do que a inferência de leis causais de explicação, é assumida como a tarefa fundamental da história cultural, da mesma maneira que, para Geertz, era a tarefa fundamental da antropologia cultural.
Roger Chartier questiona o pressuposto de que as formas simbólicas são organizadas num sistema, pois isso implicaria coerência e interdependência entre elas, o que por sua vez pressupõe a existência de um universo simbólico comum e unificado. Chartier questiona a validade de uma busca do significado segundo o modo interpretativo geertziano, pois o mesmo tende a anular as diferenças na apropriação ou no uso das formas culturais. O anseio por ver a ordem e o significado obscurece a existência de luta e conflito.
O próprio Chartier defende uma definição de história que seja basicamente sensível as desigualdades na apropriação de materiais ou práticas comuns. Ao propor essa reorientação que se distancia da comunidade e se volta para a diferença, Chartier revela a influência do sociólogo francês Pierre Bourdieu.
Bordieu reformulou o modelo marxista de explicação da vida social ao dar mais atenção à cultura.
Chartier enfatiza que os historiadores da cultura não devem substituir uma teoria redutiva da cultura enquanto reflexo da realidade social por um pressuposto igualmente redutivo de que os rituais e outras formas de ação simbólica simplesmente expressam um significado central, coerente e comunal. Tampouco devem esquecer-se de que os textos com os quais trabalham afetam o leitor de formas variadas e individuais. Os documentos que descrevem ações simbólicas do passado não são textos inocentes e transparentes; foram escritos por outros autores com diferentes intenções e estratégias, e os historiadores da cultura devem criar suas próprias estratégias para lê-los.
Chartier mostra que, nos primórdios da Europa moderna, o significado dos textos dependia de uma grande diversidade de fatores, desde a idade dos leitores até as inovações tipográficas, como a multiplicação de indicações cênicas. Seu enfoque da relação triangular entre o texto do modo como é concebido pelo autor, impresso pelo editor e lido (ou ouvido) pelo leitor lança dúvidas sobre as clássicas concepções da história da cultura, em especial sobre a dicotomia entre cultura popular e cultura erudita. Ao contrário de Chartier, a maioria dos historiadores da cultura tem demonstrado alguma relutância em utilizar a teoria da literatura de qualquer forma direta.
Para Fredric Jameson a tensão entre a análise daquilo que um texto significa e de como ele funciona é uma tensão inerente à própria linguagem. A unidade não é possível sem uma percepção da diferença; a diferença certamente não pode ser apreendida sem uma percepção contrária da unidade. Assim, os historiadores da cultura realmente não têm de escolher entre as duas – entre unidade e diferença, entre significado e funcionamento, entre interpretação e desconstrução. Assim como os historiadores não precisam escolher entre sociologia e antropologia e teoria da literatura para conduzir suas pesquisas, também não precisam fazer uma escolha definitiva entre as estratégias interpretativas baseadas no desvelamento do significado, por um lado, e as estratégias desconstrutivas baseadas no desvelamento dos modos de produção do texto, por outro.
Embora existam muitas diferenças não só dentro dos modelos antropológicos e literários, mas também entre eles, uma tendência fundamental de ambos parece atualmente fascinar os historiadores da cultura: o uso da linguagem como metáfora. O uso da linguagem como metáfora ou modelo já deu provas de ser inegavelmente significativo e , diria eu, crítico para a formulação de uma abordagem cultural da história. Em resumo, a analogia lingüística estabelece a representação como um problema que os historiadores não podem mais evitar.
Desan em seu ensaio sobre Davis e Thompson, lembra-nos de que o gênero foi uma das mais críticas configurações de diferenciação na cultura e na sociedade. Sem alguma discussão de gênero, nenhum relato de unidade e diferença culturais pode estar completo.
A importância do gênero extrapola sua posição inegavelmente central na vida social e cultural; os estudos da história das mulheres, nas décadas de 1960 e 1970, e a ênfase mais recente sobre a diferenciação dos gêneros tiveram um importante papel no desenvolvimento dos métodos da história da cultura em geral, em particular nos Estados Unidos.
No campo das técnicas literárias de leitura e das teorias literárias os ensaios de Chartier e Laqueur são exemplos notáveis dessa tendência, para Chartier a cultura não se situa acima e abaixo das relações econômicas e sociais, nem pode ser alinhada com elas. Todas as práticas, sejam econômicas ou culturais, dependem das representações utilizadas pelos indivíduos para darem sentido a seu mundo.
Todos os ensaios da Parte II ocupam-se essencialmente da mecânica da representação. Esse interesse encerra, quase necessariamente, uma reflexão simultânea sobre os métodos da história num momento em que novas técnicas de análise começam a ser usadas.
Na década de 1960 deu-se grande ênfase à identificação das tendências políticas de um autor, à tentativa de situar-se como historiador num mundo político e social mais amplo. As questões são agora mais sutis, mas não menos importantes. Os historiadores estão se conscientizando cada vez mais que suas escolhas supostamente objetivas de técnicas narrativas e formas de análise também têm implicações sociais e políticas. Em que consiste esse capítulo introdutório, por exemplo? Ensaios sobre a situação da disciplina freqüentemente têm uma forma canônica própria: primeiro uma narrativa sobre a ascensão de novos tipos de história, depois um longo momento dedicado à exploração dos problemas colocados por novos tipos de história e, finalmente, ou uma queixa sobre os males das novas práticas, ou uma celebração da potencial superação de todos os obstáculos.
No momento, como mostra este livro, a ênfase na história cultural incide sobre o exame minucioso – de textos, imagens e ações – e sobre a abertura de espírito diante daquilo que será revelado por esses exames.
Os historiadores que trabalham com a cultura não devem deixar-se desanimar pela diversidade teórica, pois acabamos de entrar numa nova e extraordinária fase em que as outras ciências humanas estão nos redescobrindo. O próprio uso do termo historicismo é revelador desse desenvolvimento. A ênfase sobre a representação na literatura, na história da arte, na antropologia e na sociologia tem levado um número cada vez maior de nossos equivalentes a se preocupar com redes históricas nas quais seus objetos de estudo são apanhados.


A “NOVA” HISTÓRIA CULTURA EXISTE?

Roger Chartier

Em primeiro lugar, centrando a sua atenção sobre as linguagens, as representações e as práticas, a nova história cultural propõe um modo inédito de compreender as relações entre as formas simbólicas e o mundo social. A abordagem clássica, ligada à localização objetiva das divisões e das diferenças sociais, ela opõe a sua construção móvel, instável, conflitual, a partir das práticas sem discurso, das lutas de representação e dos efeitos performativos dos discursos.
Em seguida, a nova história cultural encontra modelos de inteligibilidade em vizinhos que até ai os historiadores tinham freqüentado pouco: de um lado os antropólogos; de outro, os críticos literários.
Enfim, essa história, que se fez mais de estudos de casos do que de teorização global, levou os historiadores a refletir sobre as suas próprias práticas e, em particular, sobre as escolhas conscientes ou as determinações ignoradas que comandavam o seu modo de construir as narrativas e as análises históricas. Afirmava assim a convergência entre pesquisas nascidas em contextos diferentes, como por exemplo, nos Estados Unidos e na França.
A nova história cultura dos anos 1980 era claramente definida em oposição a postulados que até então tinham governado a história das mentalidades. Em primeiro lugar, o objeto da história das mentalidades é oposto daquele da história intelectual clássica. Às idéias, que resultam da elaboração consciente de um espírito singular, opõe-se a mentalidade, sempre coletiva, que rege automaticamente o conteúdo impessoal dos pensamentos comuns. Tendo por objeto o coletivo, o automático, o repetitivo, a história das mentalidades pode e deve tornar-se serial e estatística.
Duas conseqüências decorrem do primado concedido às séries, e por conseguinte ao estabelecimento e tratamento de dados homogêneos, repetidos e comparáveis, com intervalos temporais regulares. A primeira é o privilégio dado às fontes mais numerosas, largamente representativas e disponíveis para um período longo. A segunda consiste na tentativa de articular, de acordo com o modelo braudeliano das diferentes temporalidades, o tempo longo das mentalidades, que com freqüência resistem à transformação, com o tempo curto dos abandonos brutais ou de rápidas transferências de crenças e de sensibilidade.
Uma terceira característica da história das mentalidades na sua idade de ouro procede da forma ambígua de pensar a sua relação com a sociedade. A noção parece, efetivamente, destinada a apagar diferenças a fim de encontrar categorias partilhadas por todos os membros de uma mesma época. O reconhecimento dos arquétipos de civilização partilhados por uma sociedade inteira não significa certamente a anulação de toda a diferença entre os grupos sociais e clérigos e laicos. Mas estas distâncias são sempre pensadas no interior de um processo de longa duração que produz representações e comportamentos essencialmente comuns.
Para outros historiadores das mentalidades, mais diretamente inscritos na herança da história social, o essencial reside no nó que liga as distâncias entre as maneiras de pensar e de sentir as diferenças sociais. Uma tal perspectiva organiza a classificação dos fatos de mentalidade a partir das divisões estabelecidas pela análise da sociedade.
Como explicar o sucesso, tanto entre historiadores como entre leitores, na França e fora da França, da história das mentalidades, nos anos 1960 e 1970? Sem dúvida porque uma tal abordagem permitia, na própria diversidade, a criação de um novo equilíbrio entre história e ciências sociais. A atenção deslocou-se então para objetos (sistemas de crença, atitudes coletivas, formas rituais, etc) que até ai pertenciam a outras disciplinas, mas que estavam plenamente numa história das mentalidades coletivas.
Carlo Ginzburg ampliava a crítica, recusava a noção de mentalidade por três razões: para começar, pela sua insistência exclusiva em elementos inertes, obscuros e inconscientes das visões do mundo, o que reduz a importância das idéias racional e conscientemente enunciadas; em seguida, porque pressupõe indevidamente a partilha das mesmas categorias e representações por todos os meios sociais; finalmente, pela sua aliança com os procedimentos quantitativos e seriais que, em conjunto, retifica os conteúdos do pensamento, liga-se às formulações mais repetitivas e ignora as singularidades. Os historiadores eram assim convidados a privilegiar as apropriações individuais, mais do que as distribuições estatísticas, a compreender como um indivíduo ou uma comunidade interpretavam, em função da sua própria cultura, as idéias e as crenças, os textos e os livros que circulavam na sociedade que era a sua.
A crítica dirigia-se a dois postulados essenciais da história das mentalidades: por um lado, atribuir a uma sociedade inteira um conjunto estável e homogêneo de idéias e de crenças; por outro lado, considerar que todos os pensamentos e todos os comportamentos de um indivíduo são governados por uma estrutura mental única.
O processo talvez fosse injusto dado que a história das mentalidades não reteve e aplicou apenas uma definição globalizante da noção. Soube estar atenta às distinções sociais que comandam, numa mesma sociedade, diferentes maneiras de pensar e de sentir ou diversas visões do mundo, e nem sempre ignorou a presença possível, num mesmo individuo, de várias mentalidades, distintas ou mesmo contraditórias. Porém, mesmo se excessiva, a crítica conduzida contra a modalidade dominante da história cultural abriu caminho a novas maneiras de pensar as produções e as práticas culturais.

A História Cultural: Uma definição impossível?

É grande o risco de não conseguir traçar uma fronteira segura e nítida entre a história cultural e outras histórias: história das idéias, história da literatura, história da arte e etc. Deveremos mudar de perspectiva e considerar que toda a história, qualquer que ela seja, econômica ou social, demográfica ou política, é cultural, e isto, na medida em que todos os gestos, todos os comportamentos, todos os fenômenos, objetivamente mensuráveis, são sempre resultado dos significados que os indivíduos atribuem às coisas, às palavras e às ações? Nessa perspectiva, fundamentalmente antropológica, o risco é de uma definição imperialista da categoria que, ao identificar-se com a própria história, conduz à sua dissolução.
Esta dificuldade tem a sua principal razão na multiplicidade de acepções do termo “cultura”. Elas podem ser distribuídas em duas famílias de significações: a que designa as obras e os gestos que, numa dada sociedade, se subtraem às urgências do quotidiano e se submetem a um juízo estético ou intelectual; a que visa as práticas vulgares através das quais uma comunidade, qualquer que ela seja, vive e reflete a sua relação com o mundo, com os outros e com ela própria.
Segundo Geertz o conceito de cultura denota um padrão de significados historicamente transmitidos que toma corpo em símbolos, um sistema de concepções herdadas, expressas em formas simbólicas, através do qual os homens comunicam, perpetuam e desenvolvem seu conhecimento e atitudes a respeito da vida.
A cultura de uma comunidade será, portanto, a totalidade das linguagens e das ações simbólicas que lhe são próprias. Daí a atenção que os historiadores inspirados pela antropologia presta, as manifestações coletivas nas quais um sistema cultural se enuncia de forma paroxística: rituais de violência, ritos de passagem, festas carnavalescas e etc.

Representações comuns e obras singulares

De acordo com as suas diferentes heranças e tradições, a nova história cultural privilegiou objetos, domínios e métodos diferentes. Seria impossível fazer o seu inventário. Sem dúvida mais pertinente é a identificação de algumas questões comuns a estas abordagens tão diversas. Um primeiro desafio diz respeito à articulação necessária as obras singulares e as representações comuns. A questão essencial que se coloca aqui é a do processo pelo qual os leitores, os espectadores ou os ouvintes dão sentido aos textos de que se apropriam.
Abordagens semelhantes obrigaram ao afastamento em face de todas as leituras estruturalistas ou semióticas que remetiam o sentido das obras exclusivamente para o funcionamento automático e impessoal da linguagem, mas se tornaram por sua vez, o alvo das críticas da nova história cultural. Por um lado, elas consideram freqüentemente os textos como existindo em si mesmos, independentemente dos objetos e vozes que os transmitem, enquanto que uma leitura cultural das obras relembra que as formas que as dão a ler, a ouvir ou a ver, também participam na construção do seu sentido.
Por outro lado, as abordagens criticas que consideraram a leitura como uma “recepção” ou uma “resposta” universalizaram implicitamente o processo de leitura, tomando-o como um ato sempre semelhante cujas circunstancias e modalidades concretas não teriam importância. Contra um tal apagamento da historicidade do leitor, é bom lembrar que também a leitura tem uma história e que a significação dos textos depende das capacidades, das convenções e das práticas de leitura próprias às comunidades que constituem, na sincronia ou na diacronia, os seus diferentes públicos.
A sociologia dos textos, tem por objeto, o estudo das modalidades de publicação, de disseminação e de apropriação dos textos. Considera o “mundo do texto” como um mundo de objetos e de performances e o mundo do leitor como o da comunidade de interpretação à qual pertence e que define um mesmo conjunto de competências, de normas e de uso.

O Erudito e o Popular

Uma segunda questão que mobilizou a nova história cultural é a das relações entre cultura popular e erudita. Pode-se reduzir os modos de conceber essas relações a dois grandes modelos de descrição e de interpretação. O primeiro desejoso de abolir todas as formas de etnocentrismo cultural, trata a cultura popular como um sistema simbólico coerente e autônomo, que se organiza segundo uma lógica estranha e irredutível à lógica da cultura letrada. O segundo, preocupado em fazer ver a existência das relações de dominação e das desigualdades do mundo social, compreende a cultura popular a partir das suas dependências e das suas carências face à cultura dos dominantes. De um lado, a cultura popular é pensada como um sistema simbólico autônomo, independente, fechado sobre si mesmo; do outro, ela é inteiramente definida pela sua distância face a legitimidade cultural.
Os trabalhos de história cultural levaram a recusar tais distinções tão categóricas.
O destino historiográfico da cultura popular é, assim, o de estar sempre abafada, mas também sempre renascendo. O verdadeiro problema não é datar o desaparecimento irremediável de uma cultura dominada, mas compreender como, em cada época, se tecem relações complexas entre formas impostas mais ou menos restritivas, e identidades salvaguardadas, mais ou menos alteradas.

Discursos e Práticas

Um outro desafio lançado à história cultural, quaisquer que sejam as suas abordagens e objetos, diz respeito à articulação entre práticas e discursos.
A linguagem é um sistema de signos cujas relações produzem a partir delas próprias significações múltiplas e instáveis, fora de qualquer intenção ou de qualquer controle subjetivos; a “realidade” não é uma referencia objetiva, exterior ao discurso, mas é sempre construída na e pela linguagem. Uma tal perspectiva considera que os interesses sociais nunca são uma realidade preexistente, mas são sempre o resultado de uma construção simbólica e lingüística, e considera que toda a prática, qualquer que ela seja, está situada na ordem do discurso.
O objeto fundamental de uma história que visa reconhecer a maneira pela qual os atores sociais dão sentido às suas práticas e aos seus enunciados situa-se, portanto, na tensão entre, de um lado, as capacidades inventivas dos indivíduos ou das comunidades e, de outro, as restrições e as convenções que limitam – com mais ou menos força segundo as posições que ocupam nas relações de dominação – o que lhes é possível pensar, dizer e fazer. A constatação vale para as obras eruditas e as criações estéticas, sempre inscritas nas heranças e nas referências que as tornam concebíveis, comunicáveis e compreensíveis. Vale, igualmente, para todas as práticas vulgares, disseminadas, silenciosas, que inventam o quotidiano.
É a partir de uma tal constatação que se deve compreender a releitura, pelos historiadores, dos clássicos da ciências sociais e a importância de um conceito como o de “representação”, que, por si só, quase chegou a designar a nova história cultural. Esta noção permite, com efeito, ligar estreitamente as posições e relações sociais com o modo como os indivíduos e grupos se concebem e concebem os outros.
Nestes últimos anos, os trabalhos de história cultural fizeram largo uso dessa tripla acepção de representação. A nova história cultural propôs assim a história política e à história social que se tratassem às relações de poder como relações de forças simbólicas, como a história da aceitação ou da rejeição pelos dominados das representações que visam assegurar e perpetuar a sua sujeição.
A reflexão sobre a definição de identidades sexuais, que Lynn Hunt referia em 1989 como um dos traços originais da nova história cultural, constitui uma ilustração exemplar da exigência que está presente hoje em toda a prática histórica: compreender, ao mesmo tempo, como as representações e os discursos constroem relações de dominação e como eles próprios são dependentes de recursos desiguais e de interesses contrário, que separam aqueles cujo poder é legitimado daqueles de que essas representações e discursos asseguram a submissão.


HISTÓRIA E HISTÓRIA CULTURAL

Sandra Jatahy Pesavento

Capítulo I
Clio e a grande virada da História

Clio é a musa da História, nas mãos o estilete da escrita, a trombeta da fama.
Quais seriam hoje, neste novo milênio, os atributos e o perfil de Clio? Cremos que hoje, sua faceta mais recente e difundida seja aquela da chamada História Cultural. Que hoje corresponde a 80% da produção historiográfica nacional.
As alterações ocorridas no panorama internacional datam antes, com a crise de maio de 1968, com a guerra do Vietnã, a ascensão do feminismo, o surgimento da New Left, em termos de cultura, ou mesmo a derrocada dos sonhos de paz do mundo pós-guerra. Foi quando se insinuou a tão comentada crise dos paradigmas explicativos da realidade, ocasionando rupturas epistemológicas profundas que puseram em xeque os marcos conceituais dominantes na História.
A dinâmica social se tornava mais complexa com a entrada em cena de novos grupos, portadores de novas questões e interesses. Os modelos correntes de análise não davam mais conta, diante da diversidade social, das novas modalidades de fazer política, das renovadas surpresas e estratégias da economia mundial e, sobretudo, da aparentemente escapada de determinadas instâncias da realidade – como a cultura, ou os meios de comunicação de massa – aos marcos racionais e de longicidade.
Em principio, podemos dizer que foram duas as posições interpretativas da História criticadas: o marxismo e a corrente de Annales. Foi dentro da vertente neomarxista inglesa e da história francesa dos Annales que veio o impulso de renovação, resultando na abertura desta nova corrente historiográfica a que chamamos de História Cultural ou mesmo de Nova História Cultural.
No final dos anos 80, o materialismo histórico se propunha como a postura teórica que melhor dava conta da realidade brasileira, imersa, a partir de 1964 no autoritarismo de um regime militar que se estendeu até o lento processo de reabertura política dos anos 80.
Suas vertentes de análise preferenciais eram aquelas da história econômica, analisando a formação do capitalismo no Brasil, a transição da ordem escravocrata para a do trabalho livre e o surgimento do processo de industrialização. Por outro lado, realizava-se uma história dos movimentos sociais, em que, particularmente eram estudados o proletariado industrial, com suas lutas de classes, bem como a formação do partido e do sindicato. No tocante a história política, eram privilegiados os trabalhos que discutiam a natureza do Estado e a formação dos partidos políticos no Brasil.
O materialismo histórico não só era entendido como o mais adequado e completo para dar conta das realidades nacional e internacional, como também vinha armado de um aparato teórico definido e coerente, estabelecendo uma clara distancia frente à postura dos Annales, que aparecia como carente de um referencial teórico preciso.
Na virada dos anos 80 para os 90, foi a fundamentação teórica marxista que sofreu as mais duras críticas, condenação esta auxiliada pelo desempenho, mundial, dos regimes políticos embasados nessa postura nas décadas de 1950 a 80, acabando com o acontecimento emblemático da queda do muro de Berlim em 1989.
Denunciava-se um reducionismo das lógicas explicativas da realidade, atrelando a dita superestrutura às injunções da infraestrutura, ou ainda a interpretação que o processo histórico seria uma sucessão de lutas de classe. Por outro lado, o conceito de ideologia foi considerado insuficiente para a análise do chamado “mundo das idéias”, amarrado que estava as determinações da classe e do mecanismo da dominação e subordinação.
A nova historiografia dos Annales inovara com suas categorias de estrutura e conjuntura, conceitos identificadores da longa e da média duração e que passaram a operar como marcos explicativos para uma outra concepção dos marcos temporais na análise da história. Mesmo na sua crítica aos pressupostos marxistas, a história dos Annales privilegiava em sua analise os níveis econômicos e social da realidade, relegando a cultura a uma terceira instância. Entretanto, após décadas de percurso, era acusada justamente de um vazio teórico e um reduzido poder explicativo.
Por vezes, se utiliza a expressão Nova História Cultural, a lembrar que antes teria havido uma velha, antiga ou tradicional História Cultural. Foram deixadas de lado concepções de viés marxistas, que entendiam a cultura como integrante da superestrutura, como mero reflexo da infraestrutura, ou mesmo da cultura como manifestação superior do espírito humano e, portanto, como domínio das elites. Também foram deixadas para trás concepções que opunham a cultura erudita à cultura popular, esta ingenuamente concebida como reduto do autêntico.
Se a História Cultural é chamada de Nova História Cultural é porque está dando a ver uma nova forma de a História trabalhar a cultura. Trata-se antes de tudo, de pensar a cultura como um conjunto de significados partilhados e construídos pelos homens para explicar o mundo.
A cultura é ainda uma forma de expressão e tradução da realidade que se faz de forma simbólica, ou seja, admite-se que os sentidos conferidos às palavras, às coisas, às ações e aos atores sociais se apresentam de forma cifrada, portando já um significado e uma apreciação valorativa.
Não mais a posse dos documentos ou a busca da verdade definitivas. Não mais uma era de certezas normativas, de leis e modelos a regerem o social. Uma era da dúvida, talvez, da suspeita, por certo, na qual tudo é posto em interrogação, pondo em causa a coerência do mundo. Tudo o que foi, um dia, contado de uma forma, pode vir a ser contado de outra. Tudo o que hoje acontece terá, no futuro, várias versões narrativas. 


Capítulo III
Mudanças epistemológicas: a entrada em cena de um novo olhar


O primeiro conceito que reorienta a postura do historiador é o da representação. Categoria central da História Cultural, a representação foi incorporada pelos historiadores a partir das formulações de Marcel Mauss e Durkheim, no início do século XX.
Mauss e Durkheim estudaram, nos chamados povos primitivos atuais, as formas integradoras da vida social, construídas pelos homens para manter a coesão do grupo e que propõem como representação do mundo. Expressas por normas, instituições, discursos, imagens e ritos, tais representações formam com que uma realidade paralela à existência dos indivíduos, mas fazem os homens viverem por elas e nelas.
As representações construídas sobre o mundo não só se colocam no lugar deste mundo, como fazem com que os homens percebam a realidade e pautem a sua existência. São matrizes geradoras de condutas e práticas sociais, dotadas de força integradora e coesiva, bem como explicativa do real. Indivíduos e grupos dão sentido ao mundo por meio das representações que constroem sobre a realidade.
A representação é conceito ambíguo, pois na relação que se estabelece entre ausência e presença, a correspondência não é da ordem do mimético ou da transparência. A representação não é uma cópia do real, sua imagem perfeita, espécie de reflexo, mas uma construção feita a partir dele.
A uma exposição, uma representação de algo ou alguém que se coloca no lugar de um outro, distante no tempo e/ou no espaço. Aquilo/aquele que se expõe – o representante – guarda relações de semelhança, significado e atributos que remetem ao oculto – o representado. A representação envolve processo de percepção, identificação, reconhecimento, classificação, legitimação e exclusão.
As representações são também portadoras do simbólico, ou seja, dizem mais do que aquilo que mostram ou enunciam, carregam sentidos ocultos, que, construídos social e historicamente, se internalizam no inconsciente coletivo e se apresentam como naturais, dispensando reflexão. Há, no caso de fazer ver por uma imagem simbólica, a necessidade da decifração e do conhecimento de códigos de interpretação, mas estes revelam coerência de sentido pela sua construção histórica e datada, dentro de um contexto dado no tempo.
A força da representação se dá pela sua capacidade de mobilização e de produzir reconhecimento e legitimidade social. As representações se inserem em regimes de verossimilhança e de credibilidade, e não de veracidade. Decorre daí, portanto, a assertiva de Pierre Bordieu, ao definir o real como um campo de forças para definir o que é o real. As representações apresentam múltiplas configurações, e pode-se dizer que o mundo é construído de forma contraditória e variada, pelos diferentes grupos do social. Aquele que tem o poder simbólico de dizer e fazer crer sobre o mundo tem o controle da vida social e expressa a supremacia conquistada em uma relação histórica de forças. Implica que esse grupo vai impor a sua maneira de dar a ver o mundo, de estabelecer classificações e divisões, de propor valores e normas, que orientam o gosto e a percepção, que definem limites e autorizam os comportamentos e os papéis sociais.
Em termos gerais, pode-se dizer que a proposta da História Cultural seria, pois, decifrar a realidade do passado por meio das suas representações, tentando chegar àquelas formas, discursivas e imagéticas, pelas quais os homens expressaram a si próprios e o mundo.
Mas não esqueçamos que o historiador da cultura visa, por sua vez, a reconstruir com as fontes as representações da vida elaboradas pelos homens do passado. Fonte como representação do passado, meio para o historiador chegar às representações construídas no passado. Mais que um mero jogo de palavras, este raciocínio não leva a desconsiderar a realidade sobre a qual se construíram as representações, mas sim a entender que a realidade do passado só chega ao historiador por meio de representações.
Um novo conceito se apresenta como fazendo parte do elenco de mudanças epistemológicas que acompanham a emergência da História Cultural: o imaginário.
Entende-se por imaginário um sistema de idéias e imagens de representação coletiva que os homens, em todas as épocas, construíram para si, dando sentido ao mundo.
A idéia do imaginário como sistema remete à compreensão de que ele constitui um conjunto dotado de relativa coerência e articulação. A referência de que se trata de um sistema de representações coletivas tanto dá a idéia de que se trata da construção de um mundo paralelo de sinais que se constrói sobre a realidade, como aponta para o fato de que essa construção é social e histórica.
Para o historiador Bronislaw Baczko o imaginário é histórico e datado, ou seja, em cada época os homens constroem representações para conferir sentido ao real. Essa construção de sentido é ampla, uma vez que se expressa por palavras/discursos/sons, por imagens, coisas, materialidades e por práticas, ritos, performances. O imaginário comporta crenças, mitos, ideologias, conceitos, valores, é construtor de identidades e exclusões, hierarquiza, divide, aponta semelhanças e diferenças no social. Ele é um saber-fazer que organiza o mundo, produzindo a coesão ou o conflito.
Segundo Lê Goff, tudo aquilo que o homem considera como sendo a realidade é o próprio imaginário, o terreno do imaginário abrange todo o campo da experiência humana.
Para além da ideologia, redutora à classe e preconizada pelo pensamento marxista, ou para ultrapassar a indefinição dos contornos e a precariedade conceitual da mentalidade, o imaginário se ofereceu como a categoria preferencial para exprimir a capacidade dos homens para representar o mundo.
Uma outra vertente de estudo do imaginário se impôs, a partir da Antropologia. Deste campo nos chegam as noções de estruturas mentais, de tendências permanentes de organização do espírito humano. Eles são os arquétipos, elementos constitutivos do imaginário que atravessam os tempos, assinalando formas de pensar e construir representações sobre o mundo.
Para chegar até as sensibilidades de um outro tempo, é preciso que elas tenham deixado um rastro, que cheguem até o presente como um registro escrito, falado, imagético ou material, a fim de que o historiador possa acessa-las. Mesmo um sentimento, uma fantasia, uma emoção precisam deixar pegadas para que possam ser capturados em suas marcas pelo historiador.
Tanto as sociedades arcaicas quanto as modernas, contemporâneas, tecnologizadas possuem seus sistemas imaginários de representação, a construírem verdades, certezas, mitos, crenças.
Por um longo tempo, o imaginário esteve relegado ao mundo da fantasia, da ilusão, do não-real, da não-verdade, do não-sério. Contribuíram para isso, como é possível entender, o advento do racionalismo cartesiano do século XVII, seguido pelo cientificismo do século das Luzes para prolongar-se pelo século XIX, animado pelo cientificismo, pelo evolucionismo e pelo progresso.
O real é sempre o referente da construção imaginária do mundo, mas não é o seu reflexo ou cópia. O imaginário é composto de um fio terra, que remete às coisas, prosaicas ou não, do cotidiano da vida dos homens, mas não comporta também utopias e elaborações mentais que figuram ou pensam sobre coisas que, concretamente, não existem. Há um lado do imaginário que se reporta à vida, mas outro que se remete ao sonho, e ambos os lados são construtores do que chamamos de real.
Nessa medida, na construção imaginária do mundo, o imaginário é capaz de substituir-se ao real concreto, como um seu outro lado, talvez ainda mais real, pois é por ele e nele que as pessoas conduzem a sua existência.
A história teve mais de uma compreensão ao longo do tempo: já foi identificada com a experiência vivida, ou seja, com o que aconteceu no passado, com os fatos e os acontecimentos de uma temporalidade já transcorrida. Foi, posteriormente, a ciência que, com leis e métodos, estudava o passado, resgatando a verdade do acontecido em um relato fiel. Contemporaneamente, ela é entendida como a narrativa do que aconteceu um dia, entendimento este que marca uma diferença significativa com as concepções anteriores.
A figura do narrados – no caso, o historiador, que narra o acontecido – é a de alguém que mediatiza, que realiza uma seleção dos dados disponíveis, que tece relações entre eles, que os dispõe em uma seqüência dada e dá inteligibilidade ao texto. O narrador é aquele que se vale da retórica, que escolhe as palavras e constrói os argumentos, que escolhe a linguagem e o tratamento dado ao texto, que fornece uma explicação e busca convencer.
O que o historiador pretende é reconstruir o passado, para satisfazer o pacto de verdade que estabeleceu com o leitor, mas o que constrói pela narrativa é um terceiro tempo, situado nem no passado do acontecido nem no presente da escritura. Esse tempo histórico é uma invenção/ficção do historiador, que, por meio de uma intriga, refigura imaginariamente o passado. Mas sua narrativa almeja ocupar o lugar deste passado, substituindo-o. É, pois, representação que organiza os traços deixados pelo passado e se propõe como sendo a verdade do acontecido.
O narrador-historiador é ainda aquele que se vale de provas – os indícios, cuidadosamente pesquisados, selecionados e dispostos em uma rede de analogias e combinações de modo a revelar significados. O historiador-narrador cita, atestando que conhece e participa do diálogo científico e acadêmico de sua época.
No campo da História Cultural, o historiador sabe que sua narrativa pode relatar o que ocorreu um dia, mas que esse mesmo fato pode ser objeto de múltiplas versões. A rigor, ele deve ter em mente que a verdade deve comparecer no seu trabalho de escrita da História como um horizonte a alcançar, mesmo sabendo que ele não será jamais constituído por uma verdade única ou absoluta.
Como diria Jacques Ranciére, é sempre possível atribuir acontecimentos verídicos, ficções, ou substituir acontecimentos fictícios por sujeitos reais. Tal postura introduz a concepção de um outro conceito, que se insere neste novo patamar epistemológico que preside o surgimento da História Cultural: o da ficção.
A questão de admitir a ficção na escrita da História implica aproxima-la da literatura e, para alguns autores, retira-lhe o conteúdo de ciência.
Nada é simplesmente colhido do passado pelo historiador, como uma História dada. Tudo que se conhece como História é uma construção da experiência do passado, que tem se realizado em todas as épocas. A História inventa o mundo, dentro de um horizonte de aproximação com a realidade, e a distância temporal entre a escritura da história e o objeto da narrativa potencializa essa ficção. Nesta medida, a História constrói um discurso imaginário e aproximativo sobre aquilo que teria ocorrido um dia, o que implica dizer que faz uso da ficção. Nesta medida, História e Literatura são formas de dar a conhecer o mundo, mas só a História tem a pretensão de chegar ao real acontecido.
Um outro conceito ainda se impõe, dizendo respeito a algo que se encontra no cerne daquilo que o historiador do passado pretende atingir: as sensibilidades.
As sensibilidades corresponderiam a este núcleo primário de percepção e tradução da experiência humana no mundo. O conhecimento sensível opera como uma forma de apreensão do mundo que brota não do racional ou das elucubrações mentais elaboradas, mas dos sentidos, que vem do íntimo de cada indivíduo. Ás sensibilidades compete essa espécie de assalto ao mundo cognitivo, pois lidam com as sensações, com o emocional, com a subjetividade.
Passou-se assim a uma história social renovada: do estudo dos pobres, dos subalternos enquanto classe ou grupo, detentores de uma expressão cultural dita popular, passou-se a uma história de vida das pessoas humildes. É a partir da experiência histórica pessoal que se resgatam emoções, sentimentos, idéias, temores ou desejos, o que não implica abandonar a perspectiva de que essa tradução sensível da realidade seja historicizada e socializada para os homens de uma determinada época.
As sensibilidades seriam as formas pelas quais indivíduos e grupos se dão a perceber, comparecendo como um reduto de tradução da realidade por meio das emoções e dos sentidos. Mesmo que tais representações sensíveis se refiram a algo que não tenha existência real ou comprovada, o que se coloca na pauta da análise é a realidade do sentimento, a experiência sensível de viver e enfrentar aquela representação. Pensar nas sensibilidades não é somente mergulhar no estudo do indivíduo e da subjetividade, das trajetórias de vida, enfim. É também lidar com a vida privada e com todas as suas nuances e formas de exteriorizar – ou esconder – os sentimentos.
Representação e imaginário, o retorno da narrativa, a entrada em cena da ficção e a idéia das sensibilidades levam os historiadores a repensar não só as possibilidades de acesso ao passado, na reconfiguração de uma temporalidade, como colocam em evidência a escrita da história e a leitura dos textos.
O controle do historiador sobre o leitor se dará pela exemplaridade de sua fala, pela retórica de seu texto, armando bem a intriga e explicitando seus argumentos de forma a produzir coerência na interpretação, pelas evidências da pesquisa e das fontes utilizadas, pelo seu prestígio no mundo da História, pelo atributo de ser, como historiador, a fala autorizada sobre o passado. Mas, mesmo assim, um texto esta sujeito à construção de múltiplos sentidos, por meio da leitura. Tal como a realidade, passível de ser traduzida em múltiplas versões pelos discursos da História, o texto do historiador também se vê afetado pela mesma indeterminação, no plano da recepção.


Capítulo IV
Em busca de um método: as estratégias do fazer História

Falar de método é falar de um como, de uma estratégia de abordagem, de um saber-fazer.
É a questão formulada ou o problema que ilumina o olhar do historiador, que transforma os vestígios do passado em fonte ou documento, mas é preciso faze-los falar.
Mas afinal, qual seria o método concebido pela História Cultura?
Carlo Ginzburg nos fala de um paradigma indiciário. Nele, o historiador é equiparado a um detetive, pois é responsável pela decifração de um enigma, pela elucidação de um enredo e pela revelação de um segredo. Enfrentando o desafio do passado com atitude dedutiva e movido pela suspeita, prestando atenção nas evidências, mas não entendendo o real como transparente.        
Ir além daquilo que é dito, ver além daquilo que é mostrado é a regra de ação desse historiador detetive, que deve exercitar o seu olhar para os traços secundários, para os detalhes, para os elementos que, sob um olhar menos arguto e perspicaz, passariam desapercebidos.
Sem dúvida, o historiador se apóia em textos e imagens que ele constrói como fontes, como traços portadores de significado para resolver os problemas que se coloca para resolver. Mas é preciso ir de um texto a outro texto, sair da fonte para mergulhar no referencial de contingência no qual se insere o objeto do historiador. Do texto ao extratexto, esse procedimento potencializa a interpretação e assinala uma condição especialíssima, que é o verdadeiro capital do historiador: a sua erudição.
Essa bagagem prévia que lhe permite realizar, por exemplo, uma leitura intertextual, ou seja, ver em um texto dado, a leitura, apropriação e ressignificação feita a partir de um outro. Ler, em um texto, outro; remeter uma imagem a outra, associar diferentes significantes para remeter a um terceiro oculto, portador de um novo significado.
Fornecendo ao historiador os exemplos de um método altamente significativo para realizar uma pesquisa intensa, descrevendo a realidade observada nos seus mínimos detalhes e correlação de significados possível, a descrição densa da Antropologia ensinou como explorar as fontes nas suas possibilidades mais profundas, fazendo-as falar e revelar significados. Não se trata apenas de descrever o objeto minuciosamente, mas sim de aprofundar a análise do mesmo, explorando todas as possibilidades interpretativas que ele oferece.
O método fornece ao historiador meios de controle e verificação, possibilitando uma maneira de mostrar, com segurança e seriedade, o caminho percorrido, desde a pergunta formulada à pesquisa de arquivo, assim como a estratégia pela qual fez a fonte falar, produzindo sentidos e revelações, que ele transformou em texto.
O extratexto é aqui considerado como sendo toda aquela bagagem de conhecimento que o historiador possui referente a um contexto mais amplo, e pode intervir na estratégia de cruzamento com os dados em análise.


Capítulo V
Correntes, campos temáticos e fontes: uma aventura da História

Quais seriam as novas correntes trilhadas pela História Cultural, a partir daquele patamar epistemológico e metodológico anteriormente enunciado?
A primeira delas seria a do texto, pensando a escrita e a literatura. Seus pressupostos de análise decorrem daqueles conceitos já apresentados, ou seja, o da compreensão da História como uma narrativa que constrói uma representação sobre o passado, e que se desdobra nos estudos da produção e da recepção dos textos.
Em se tratando da escrita/produção, o historiador lança as perguntas sobre quem fala e de onde fala, ao enfocar o texto propriamente dito, o que se fala e como se fala na análise da recepção, a questão jogada pelo historiador será discutir para quem se fala.
Um modo referencial privilegiado para o entendimento da História Cultural pode ser o da metáfora, ou seja, o discurso explica, fala de algo que se percebe e se entende como real, como um outro deste real. Ele fala por uma modalidade referencial de indicar uma significação para além deste real, envolvendo uma hermenêutica. A postura metafórica, ou da hermenêutica do texto, é a que melhor concentra a idéia de que uma escrita comporta mensagens e significados, mas que podem ser lidos de várias maneiras.
Uma outra corrente historiográfica é a da micro-história, vertente associada a Carlo Ginzburg. A micro-história realiza uma redução da escala de análise, seguida da exploração intensiva de um objeto de talhe limitado. Esse processo é acompanhado de uma valorização do empírico, exaustivamente trabalhado ao longo de extensa pesquisa de arquivo. A micro-história põe em prática uma metodologia de abordagem do social. Justo na aparente imobilidade do fato, os historiadores buscavam surpreender a dinâmica da História, unindo o dado arquivístico à multiplicidade das relações sociais.
Os elementos do micro não só permite pensar o todo como, inclusive, possibilita elevar a escala de interpretação a um plano mais amplo e distante, para além do espaço e do tempo, pensando na circularidade cultural ou na difusão dos traços e significados produzidos pelos homens em todas as épocas.Porém há riscos como a extrapolação interpretativa ou focar uma exceção ou regra vigente.
Uma terceira corrente muito atual é a Nova História Política, fala-se em uma História Cultural do Político, mobilizada pelos estudos que se centram em torno do imaginário do poder, sobre a performance de atores, sobre a eficácia simbólica de ritos e imagens produzidas segundo fins e usos do político, sobre os fenômenos que presidem a repartição da autoridade e do poder entre grupos e indivíduos, sobre mitos e crenças que levam os homens a acreditar em alguém ou algo, pautando a ação e a percepção da realidade sobre os mecanismos pelas quais se constroem identidades dotadas do poder simbólico de coesão social.
Não seria demais falar em uma verdadeira renovação do político, trazida pela História Cultural.
Abandonando formas ainda herdadas de uma tradição positivista, linear, seqüencial e causal de análise do político, ou ainda de um viés marxista, a ver a política como manifestação superestrutural de uma infraestrutura socioeconômica, ou ainda mesmo a uma vertente da ciência política, a estudar os comportamentos políticos dos grupos, os partidos e as eleições, o renascimento da história política, a aproximação com a  história cultural rendeu bons frutos.
Se a História Cultural visa a atingir as representações, individuais e coletivas, que os homens constroem sobre o mundo, a História Cultural do Político difundiu-se, tendo como uma de suas preocupações centrais a definição de uma cultura política. Esta corresponderia a um conjunto das representações que nutrem um grupo no plano político, uma visão partilhada, uma leitura comum do passado, uma projeção no futuro a ser vivido em conjunto.
As correntes da História Cultural aqui apresentadas não esgotam esses domínios, e pretendem referir-se a tendências amplas, constatadas a partir da publicação de livros. Tais correntes se traduzem em campos temáticos de pesquisa, em torno dos quais se agregam os trabalhos de investigação.
Um deles seria o das cidades. Muito já se escreveu, tanto sob uma abordagem marxista, sobre o fenômeno urbano. Chamamos de perspectiva quantitativa e evolutiva aquele tipo de abordagem sem qualquer outro compromisso teórico maior, empenhada na descrição da história de uma cidade, retraçando a sua evolução.
O que cabe destacar é a abordagem introduzida pela História Cultural: ela não é mais considerada só como um lócus, seja da realização da produção ou da ação social, mas sobretudo como um problema e um objeto de reflexão. Não se estudam apenas processos econômicos e sociais que ocorrem na cidade, mas as representações que se constroem na e sobre a cidade. Pode-se dizer que a História Cultural passa a trabalhar com o imaginário urbano, o que implica resgatar discursos e imagens de representação da cidade que incidem sobre espaços, atores e práticas sociais.
Para a História Cultural, a relação entre História e a Literatura se resolve no plano epistemológico, mediante aproximações e distanciamentos, entendendo-as como diferentes formas de dizer o mundo, que guardam distintas aproximações com o real. Ambas são formas de explicar o presente, inventar o passado, imaginar o futuro. Valem-se se estratégias retóricas, estetizando em narrativa os fatos dos quais se propõem falar.
É a História que formula as perguntas e coloca as questões, enquanto que a literatura opera como fonte. A Literatura ocupa, no caso, a função de traço, que se transforma em documento e que passa a responder às questões formuladas pelo historiador.
Se a História Cultural esta em busca do resgate das representações passadas, se almeja atingir aquele reduto de sensibilidades e de investimento primário na significação do mundo, a Literatura é uma fonte realmente especial: ela pode dar ao historiador aquele algo a mais que outras fontes não fornecerão.
A Literatura permite o acesso à sintonia fina ou ao clima de uma época, ao modo pelo qual as pessoas pensavam o mundo, a si próprias, quais os valores que guiavam seus passos, quais os preconceitos, medos e sonhos. Ela dá a ver sensibilidades, perfis, valores. Ela representa o real, ela é fonte privilegiada para a leitura do imaginário.
A Literatura é testemunho de si própria, portanto o que conta para o historiador não é o tempo da narrativa, mas sim o da escrita. Ela é tomada a partir do autor e sua época, o que dá pistas sobre a escolha do tema e de seu enredo, tal como sobre o horizonte de expectativas de uma época.
Um outro campo de pesquisa da História Cultural diz respeito às imagens. Diante de um predomínio ou de uma tradição no uso de fontes escritas, mesmo sendo tão antigas quanto a presença do homem na terra, as imagens são ainda consideradas um campo relativamente novo no âmbito da História. As imagens podem ser reconhecíveis ou estranhas, na medida em que se propõem reproduzir o real, de forma realista, a representa-lo de maneira cifrada ou simbólica, decompô-lo e transforma-lo, deformando-o.
A redescoberta da imagem pela História deu-se pela associação com a idéia da representação, tal como se deu com relação ao texto literário. As imagens estabelecem uma mediação entre o mundo do espectador e do produtor, tendo como referente a realidade tal como, no caso do discurso, o texto é mediador entre o mundo da leitura e o da escrita. Afinal, palavras e imagens são formas de representação do mundo que constituem o imaginário. Mas, sendo representações do mundo, qual seria o diferencial da imagem com relação ao texto?
As imagens partilham das condições de produção e recepção dos textos ou apresentam uma especificidade?
Sobre essa questão Duby refletia que, na escrita, é mais fácil dizer e não dizer. Na revelação ou no ocultamento de sentidos, o discurso favorece lacunas, tal como a retórica que expõe a argumentação desejada é quase infinda nas suas estratégicas de convencimento.
Já com a imagem, se poderia dizer que o grau de percepção do conjunto, dada a exposição visual do todo, se dá de maneira mais rápida, quase imediata, ao passo que o texto pressupõe o tempo de leitura com todas as suas operações lógicas de compreensão.
Não se pode esquecer que a imagem, para ser lida, possui códigos especiais, espécie de ícones ou signos que remetem a uma lógica de significados para uma época dada. Assim, a semiótica se propõe enfrentar essa leitura cifrada da imagem, que por sua vez  remete o leitor a um conhecimento paralelo daquilo que está contido na imagem.
A imagem possui uma função epistêmica, de dar a conhecer algo, uma função simbólica, de dar acesso a um significado, e uma estética, de produzir sensações e emoções no espectador.
A imagem enquanto registro de algo no tempo é testemunho de época, mas testemunho também de si própria, tal como o texto literário, ou seja, é o momento de sua feitura, e não a temporalidade do seu conteúdo ou tema que cabe atingir.
As identidades são, pelo seu lado, um outro campo de pesquisa para a História Cultural. Enquanto representação social, a identidade é uma construção simbólica de sentido, que organiza um sistema compreensivo a partir da idéia de pertencimento. A identidade é uma construção imaginária que produz a coesão social, permitindo a identificação da parte com o todo, do indivíduo frente a uma coletividade, e estabelece a diferença. A identidade é relacional, pois ela se constitui a partir da identificação de uma alteridade. Frente ao eu ou ao nós do pertencimento se coloca a estrangeiridade do outro.
O que é importante considerar não é a constatação da diferença, fenômeno que, por si só, é um dado posto pela diversidade racial, étnica ou de organização social entre os homens, mas sim a maneira pela qual se constrói pelo imaginário essa diferença.
Para a elaboração identitária, que cria o sentimento partilhado de pertencer a um grupo dado, as identificações se dão a partir do defrontamento com o outro, identificações de reconhecimento estas que podem ou não guardar relações de proximidade com o real. As representações de identidade são sempre qualificadas em torno de atributos, características e valores socializados em torno daqueles que integram o parâmetro identitário e que se colocam como diferencial em relação à alteridade.
As identidades são múltiplas e vão desde o eu, pessoal, construtor da personalidade, aos múltiplos recortes do social, fazendo com que um mesmo individuo superponha e acumule, em si, diferentes perfis identitários. Estes não são, a rigor, excludentes por si mesmos, nem forçosamente atingem uma composição harmônica e sem conflitos nessa espécie de rede poli-identitária que cerca o indivíduo.
As identidades podem dar conta dos múltiplos recortes do social, sendo étnicas, raciais, religiosas, etárias, de gênero, de posição social, de classe ou de renda, ou ainda então profissionais.
A identidade deve apresentar um capital simbólico de valoração positiva, deve atrair a adesão, ir ao encontro das necessidades mais intrínsecas do ser humano de adaptar-se e ser reconhecido socialmente. Mais do que isso, a identidade responde, também, a uma necessidade de acreditar em algo positivo e a que o individuo possa se considerar como pertencente.
A alteridade, por sua vez, se revela por diferentes formas: os outros são, também, muitos, e podemos conviver com eles em termos de admiração ou emulação, de sedução e desejo, de estranhamento e distância ou, no seu caso-limite, em termos de negação. Nesse caso, estaríamos diante da modalidade perversa da alteridade. A exclusão é, no caso, condição atribuída, que nasce do gesto, da palavra e do olhar de quem designa o outro. Ela se faz acompanhar da rejeição, do estigma e do preconceito, negando um lugar social de reconhecimento a este outro.
A questão dos excluídos é um dado posto pelo mundo atual, pressionando não só o debate sobre o tema como reflexões acerca da presença de tais categorias no imaginário social que os homens construíram para si ao longo da História. Nessa medida, esse dado contemporâneo repõe, para o historiador, o interesse pelo estudo de tais questões, sobretudo sobre a eficácia simbólica das representações nos movimentos sociais de hoje.
Outro campo de pesquisa da História Cultural é a História do tempo presente, tal campo implica tomar esta História na qual os acontecimentos estão ainda a se desenvolver. Trata-se de uma história ainda não acabada, em que o historiador não cumpre o seu papel de reconstruir um processo já acabado, de que se conhecem os fins e as conseqüências.
Sem dúvida, tal História em curso, da qual o historiador é espectador e/ou participante, comporta riscos, como, por exemplo, o do envolvimento direto, com todo o curso de paixões e posicionamentos, que acarreta, a prejudicar a distância que ele deve guardar com relação a seu objeto.
Mais um campo de pesquisa que se apresenta à História Cultural é aquele que diz respeito à Memória e Historiografia. Este é, a rigor, um campo derivado, de forma especial, da corrente que discute a escrita da História, realizando aproximações com a memória.
Enquanto representação, a Memória permite que se possa lembrar sem a presença da coisa ou da pessoa evocada, simplesmente com a presença de uma imagem no espírito e com o registro de uma ausência dada pela passagem do tempo. Há uma modalidade da memória chamada por Aristóteles de mneme, que diz respeito à presença involuntária de tais imagens do passado no espírito, que surgem por evocação espontânea ou que podem ser despertadas por um ato ou objeto que reproduz uma experiência e uma sensação.
Hás também uma outra Memória, a anamnese, que vem ser o trabalho da busca, de intenção deliberada na recuperação das lembranças. Se trata da memória voluntária, na qual existe um empenho de recuperar, pelo espírito, alguma coisa que tenha ocorrido no passado. O reconhecimento se opera por um ato de confiança, que confere veracidade à rememoração.
Cabe dizer que a contrapartida da Memória é o esquecimento. Não é possível tudo lembrar, pois a memória é seletiva, tal como a matéria do esquecimento também é objeto de processos que ultrapassam a escala do inconsciente. Por outro lado, se formos ter em conta esta mescla que se processa entre memória individual e memória coletiva, há que pensar que as pessoas são ensinadas a lembrar e a esquecer, fazendo com que determinados acontecimentos não sejam considerados importantes ou mesmo que não tenham acontecido.
Dessa forma o campo de pesquisa se abre para o estudo de como, ao longo dos tempos, os historiadores construíram suas narrativas de reconstrução das temporalidades passadas, à luz destas questões que se encontram no âmago da História Cultural: escrita e leitura, ou ficcionalização narrativa do passado e horizonte de expectativas do planos de recepção; formas de aproximação com o referente ou maneiras de testagem e verificação do texto com o real.
Explicitadas algumas das principais correntes e campos de pesquisa da História Cultural, cabe dizer que o espectro das fontes se revela quase infinito. Uma idéia na cabeça, uma pergunta suspensa nos lábios, o mundo dos arquivos diante dos olhos e das mãos. Nessa medida, tudo pode vir a tornar-se fonte ou documento para a História, dependendo da pergunta que seja formulada.

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